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Raízes da Violência Política em Alagoas

 

Por Golbery Lessa- historiador
Dedicado a Alexystaine Laurindo e Mariana Pércia

O autoritarismo em Alagoas manifesta-se de maneira muito mais perversa do que nas regiões mais desenvolvidas do país.
Isso é determinado pela forte presença da grande propriedade agrícola, pecuária e agroindustrial e pelos nossos baixíssimos índices de verdadeira industrialização e de divisão social do trabalho.
A expressão dessa base econômica no universo político é um órgão estatal profundamente oligárquico, autoritário e patrimonialista. A burguesia alagoana se expressa na esfera política como uma oligarquia, como um conjunto de poucas famílias que domina os três poderes nos quais se divide o Estado contemporâneo.
Esse poder é exercido de maneira autoritária e patrimonialista, sem respeito às leis democráticas vigentes e à separação que deve existir entre o patrimônio público e o patrimônio privado dos governantes.
No universo cultural, essa economia e essa política atrasadas determinam a vigência de idéias e costumes racistas, antidemocráticos e paternalistas, além de uma grande dificuldade para que as correntes de pensamento progressistas possam se estabelecer com consistência e durabilidade.
Quase não há espaço público em Alagoas, os direitos políticos fundamentais não têm vigência plena, sobrevivem apenas de maneira residual; subsistem mais pela inserção do estado na Federação do que por razões internas.
Em Alagoas, o Estado de Direito tem uma existência mais formal do que real: as formalidades jurídicas são observadas juntamente com um quase completo desrespeito ao conteúdo das leis.
Esse caráter residual da democracia é mais agudo no interior do que em Maceió. Isso ocorre porque na Capital há uma maior complexidade econômica, social e ideológica.
A classe proprietária divide-se em um largo arco-íris de tipos e subtipos, formados por comerciantes, pequenos industriais e empresários do setor de serviços, e as grandes usinas não têm peso significativo na economia da cidade.
Na capital concentra-se uma grande massa de assalariados do setor público e do setor privado; massa que encontra um ambiente objetivo mais propício para a organização sindical e política e também para expressar-se ideologicamente com mais liberdade e consistência.
Para tornar ainda mais complexo o quadro de Maceió, há também uma grande massa de subempregados e desempregados que enlaça a cidade como um grande cinturão de necessidades humanas insatisfeitas e, devido à sua fragmentação objetiva, resiste a quase toda tentativa de organização política duradoura, seja de esquerda ou de direita.
Porém essa massa sofredora e estigmatizada pensa, sente, e é influenciada pelas vanguardas políticas da cidade e movimenta-se freqüentemente como um grande bloco nos períodos eleitorais e em outros momentos políticos, sendo capaz de determinar a vitória ou a der-rota de qualquer corrente política na cidade e, muitas vezes, no Estado.
Em Maceió, a complexidade e a magnitude dos interesses e, portanto, das possibilidades de conflito, impõem uma vigência um pouco mais significativa das instituições democráticas.
Nos municípios do interior, em suas áreas rurais e urbanas, os direitos políticos fundamentais são radicalmente negados para os assalariados, os camponeses, a pequena burguesia rural e a classe média das cidades.
Os grandes proprietários de terra e de outros bens de produção decisivos dispõem de um poder político discricionário; poder que é baseado na política de clãs familiares, no compadrio, na negação do espaço público para os adversários, na aplicação da violência física para solucionar desde os pequenos conflitos até as questões decisivas, e no desprezo pelo embate das idéias no universo da política.
Trata-se, portanto, de um espaço onde domina, quase inconteste, o arbítrio dos poderosos, os caprichos de um pequeno grupo de pessoas que possui o domínio político quase absoluto sobre a massa da população.
A diferença existente entre as estruturas de poder no interior e na capital constitui-se em um fenômeno básico no universo político do estado de Alagoas.
Os movimentos democráticos e progressitas desenvolvem-se geralmente em Maceió e, posteriormente, são obrigados a enfrentar a dura reação que se baseia nos municípios do interior, principalmente naqueles de menor população e complexidade social.
A reação oligárquica muitas vezes é tão forte que isola e derrota esses movimentos.
Essas circunstâncias têm servido, durante parte da nossa história, como uma grande muralha separando politicamente a classe trabalhadora, a pequena burguesia e a classe média de Maceió dos trabalhadores, pequenos burgueses e setores médios do resto do Estado.
Os assalariados do Sertão, do Agreste e da zona canavieira, parte essencial de qualquer movimento democrático e progressista em Alagoas, ficam separados uns dos outros e apartados das forças populares maceioenses pelas cercas de cada fazenda ou usina e pela vigilância ininterrupta e violenta das oligarquias interioranas.
Ser um sindicalista combativo na zona canavieira, no Agreste e no Sertão tem sido algo análogo a assinar para si mesmo uma sentença de morte ou, pelo menos, chamar para perto de si a desgraça.
A Assembléia Legislativa foi durante toda a história alagoana a expressão condensada do poder dos coronéis interioranos.
E essa característica essencial do poder legislativo não foi nem de longe negada pelo surgimento, em alguns momentos históricos, de depu-tados democratas, progressitas e comunistas, já que, apesar do seu esforço e do seu heroísmo, o número destes parlamentares sempre foi muito reduzido em relação ao número de representantes da oligarquia.
O Legislativo alagoano tem sido, historicamente, a Casa das oligarquias e não a Casa do povo; em Alagoas, este poder não é um instrumento para a democracia, é uma ampla vereda para o autoritarismo e a dilapidação do patrimônio público em benefício da classe dominante.
De maneira análoga, o Poder Judiciário funcionou na nossa história como um braço jurídico dos poderosos na sua luta contra o Estado de Direito democrático e contra a justiça.
Apesar da luta de alguns juízes, procuradores, defensores públicos e advogados para reverterem esta situação vexatória, seus esforços têm resultado em melhorias muito pontuais, o que é determinado tanto pelo ambiente oligárquico geral como pelas dificuldades inerentes à luta na esfera do Judiciário.
Em Alagoas, o crime organizado não é independente dessa realidade antidemocrática de longa duração.
Em um ambiente social marcado pelo poder dos coronéis, não surpreende que se desenvolvam grupos armados que misturam os crimes comuns com as suas intervenções, abertas ou veladas, no jogo político.
A própria forma adquirida pelo poder político em Alagoas torna esses grupos armados uma necessidade estrutural da classe dominante, bem como torna estrutural a conivência dessa classe com suas várias dimensões.
As quadrilhas formadas nesse ambiente somente são reprimidas pelo aparelho do Estado quando passam de determinados limites; isso ocorre quando criam escândalos nacionais ou quando se chocam com os interesses das próprias oligarquias.
A agudeza do autoritarismo alagoano também se revela no universo do pensamento cotidiano e das formas culturais mais complexas, sejam eruditas ou populares.
A vida em Alagoas é marcada por profundos preconceitos e discriminações sociais, raciais e de gênero. O pouco desenvolvimento da divisão social do trabalho e, portanto, das instituições sociais e políticas modernas, cria um ambiente altamente suscetível a que as pessoas sejam avaliadas tanto pela sua posição de classe quanto pelas suas dimensões biológicas e culturais.
Assim, os negros, os índios, os mestiços, as mulheres, os homossexuais e os deficientes físicos e mentais sofrem, na terra do Quilombo dos Palmares e de Nise da Silveira, uma opressão tão aguda que é de difícil descrição, principalmente quando esta opressão vem acompanhada pelo preconceito relativo à origem de classe.
Também nesse aspecto, a situação no interior é mais grave do que em Maceió.
O espaço social marcado pelo par latifúndio-minifúndio e pelo trabalho agrícola braçal, ou seja, a inexistência de um setor de serviços amplo e de uma indústria significativa determina a prevalência de uma cultura patriarcal, dificultando a libertação feminina e sua luta pela igualdade de direitos com os homens.
Os homossexuais são moralmente dizimados, sofrem vários tipos de violência simbólica infames, quando não são mortos.
Esse ambiente rigidamente hierarquizado e rancoroso é propício para o desenvolvimento dos mais baixos sentimentos de superioridade familiar e racial, o que concorre para que as sobrevivências do passado escravista sejam constantemente renovadas e estigmatizem profundamente os negros, os índios e os mestiços, os quais, não por acaso, estão geralmente entre as camadas mais pobres da população.
Mesmo apresentando esse fenômeno de maneira mais atenuada, Maceió não está livre desses preconceitos abjetos: a grande maioria da população maceioense é completamente estigmatizada pela cor da pele, pela sua situação social e pelo seu local de moradia.
Esses estigmas e a luta contra eles consistem na principal marca das culturas maceioense e alagoana.
Em Alagoas não prosperou nem a ideologia da “democracia racial”; ideologia que, apesar de encobrir de maneira capciosa a opressão contra os não- brancos, é uma espécie de tributo que o vício do preconceito paga à virtude da democracia.
Concluindo, podemos dizer que a radicalidade do atraso alagoano, a maneira particularmente perversa de o Estado reproduzir o capitalismo periférico e retardatário brasileiro constituiu, seja na economia, no universo político e na esfera da cultura, uma formação social muito peculiar, uma espécie de purgatório terreno no qual gerações foram colocadas para medir os limites da tragédia humana.
Possuímos quase todos os defeitos do capitalismo nas suas manifestações mais radicais e não temos a maior parte dos aspectos positivos desse modo de produção.
Temos o egoísmo individualista, mas não temos a democracia; temos tecnologias que desempregam, mas não temos alfabetização; temos miséria urbana, meninos e meninas vivendo na rua, idosos espalhados pelas calçadas, mas não temos empregos industriais e políticas de amparo social consistentes.
Enfim, sofremos as conseqüências dilacerantes de possuirmos de uma maneira congênita e radical os problemas do atraso e as mazelas da modernidade.  

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